Passar para o conteúdo principal
Associado de Valor
14/07/2023



Guardiões de sabores tradicionais, embaixadores gastronómicos de um território, tantas são as classificações que podemos atribuir a António Desidério e Ana Maria, que há 40 anos abriram o Solar Bragançano, bem no coração da cidade de Bragança. 


O restaurante sempre funcionou num edifício do séc. XVII. Possui diversas salas de refeições, mesas com enorme requinte, um jardim interior e uma sala dedicada à literatura. Há quadros assinados nas paredes e livros por todo o lado, um convite ao conhecimento, como também o é cada experiência gastronómica da casa. A cozinha, que confeciona a fogo lento, com tempo, dedicação e muito amor e respeito pela gastronomia, é “comandada” por Ana Maria. A sala de refeições tem como “mestre” António Desidério, um contador de histórias que não deixa nenhum cliente indiferente, porque tem sempre alguma peculiaridade que acrescenta a cada visita, tornando cada experiência única.
E o mais importante, a carta que soma alguns dos pratos e produtos mais emblemáticos da gastronomia transmontana, propõe sempre peixes frescos e pratos especiais de caça. As características da cozinha regional acentuam-se nalgumas propostas, como a Sopa de Castanhas, o Cabrito, a Perdiz, a Lebre ou o Veado.
António Desidério orgulha-se de contar que a lareira está acesa em permanência, sempre com os potes de ferro ao lume. 
Nesta conversa com o casal recuamos 40 anos, para perceber que além da boa comida e do saber servir, nesta casa há uma enorme paixão pela gastronomia.
“Eu gostava de comer bem e não tinha dinheiro para comer bem todos os dias, a melhor forma de comer bem era abrir um restaurante”, conta António Desidério, com o humor que o caracteriza.
Ana Maria era professora do primeiro ciclo e nos primeiros anos conciliou a atividade, que também a apaixonava, com o restaurante e ainda a educação dos filhos. “Sempre esteve no comando”, refere Desidério com orgulho bem patente no olhar de admiração que dirige à mulher.  “Não era eu que cozinhava, só garantia as sobremesas que sempre fui eu que fiz, já fiz milhares”, revela a responsável de cozinha. Não consegue apontar uma sobremesa preferida, confessa-se gulosa e diz gostar “de todas”, mas a última é sempre a melhor e, atualmente, a "tarte surpresa" é o ex-libris da casa: “só é surpresa a primeira vez que o cliente a prova, depois eu revelo o segredo”, acrescenta.
Há muitos anos que o Solar Bragançano é um dos restaurantes mais referenciados em revistas da especialidade, mas nem sempre foi assim.
No primeiro verão que o restaurante abriu toda a clientela era estrangeira, não havia clientes portugueses e muito menos da cidade de Bragança. “Aparecemos nos guias estrangeiros e isso foi o que nos trouxe os primeiros clientes. Nessa altura já havia turismo, vinha muita gente para Montesinho”, recorda. “Eu penso que já recebemos aqui clientes de todo o mundo, temos tantos cartões guardados de pessoas de todo o lado”, continua mostrando orgulho, sobretudo porque que quem vai ao Solar Bragança regressa, aliás, a gastronomia é um dos cartões de visita da região. 
Regressando à origem, António Desidério, refere a famosa frase “ainda somos do tempo em que uma carroça puxada por uma mula vinha das Quintas da Seara trazer as nabiças e outros legumes; a água faltava com frequência, as torneiras ficavam abertas, depois vinha a água outra vez e era uma inundação; ainda a trovoada não tinha chegado já as instalações da luz estavam a ir ao ar”, refere. “Na Rua Direita podia-se andar para baixo e para cima, nos dois sentidos, estacionava-se à porta do restaurante”, continua.
As memórias causam-lhe graça, mas o empresário reconhece que a cidade “está muito melhor agora, muito melhor organizada, muito mais bonita”. A mulher acrescenta a limpeza da cidade de Bragança, reconhecida e apontada com frequência pelos turistas. “Se sair daqui tem dificuldade em encontrar um papel no chão”, refere Desidério com orgulho. 
Esta constatação fez-lhe recordar uma ocasião em que um cliente ao sair do solar atirou com a fatura para o chão. “Eu vi, fui lá, apanhei o papel, descobri a morada do cliente e envie-lhe pelo correio a fatura, dizendo, penso que terá perdido este documento que lhe pertence”, recorda entre risos. Uma lição que o cliente agradeceu, uma história que António Desidério conta sem parar de rir. 
Os tempos iniciais não foram fáceis, mas o casal sublinha que sempre teve outras fontes de rendimento que lhes permitiram nunca baixar a qualidade, nem deixar cair o padrão de serviço que construiu.

Solar Bragançano parece “sala da ONU”
Não havia redes sociais, mas a palavra foi passando sobretudo fora de Portugal. “Não tínhamos um cliente de Bragança e poucos portugueses, também não havia estradas como agora, havia comboio, mas não chegavam ao solar, os de cá não acreditavam em nós”, conta.
Em 40 anos de trabalho Ana Maria e Desidério já atenderam milhares de pessoas de todo o mundo e há dias em que na mesma sala de refeições há pessoas de mais de uma dezena de países diferentes. “Nesta semana tive um cliente que referiu que estava a ouvir tantas línguas diferentes que a nossa sala parecia uma sala da ONU”, contou Ana Maria. 
Ambos são verdadeiros anfitriões da cidade, recebem pessoas de todos os extratos sociais, diferentes culturas, diferentes níveis de educação e sublinham que, por norma, são as pessoas mais “destacadas” profissionalmente, que revelam maior humildade. Ana Maria fala com saudade, por exemplo, do ex-ministro Mariano Gago, apontando-o como um dos clientes por quem guardou maior apreço, precisamente pela sua postura simples e humilde.
Pelo Solar Bragançano já passaram todas as mais ilustres figuras de Estado, governantes, artistas consagrados, nacionais e estrangeiros, vedetas televisivas e cinematográficas, jornalistas e tantos cidadãos comuns, com ou sem destaque social. Todos os clientes são atendidos com a mesma deferência, tratados com a mesma consideração. 
Muitos transformam-se em amigos, guardados com muito carinho no coração deste casal: “eu acho que muitos dos nossos clientes já só vêm cá para nos ver e para ver se ainda cá continuamos”, diz com graça Ana Maria reforçando que, apesar do cansaço causado por alguns dias mais intensos, não está nas intenções do casal a reforma. “Tive uma vida muito intensa, se parar morro”, ri a anfitriã. Desidério acrescenta que lhe faz falta ainda mais tempo “para trabalhar”. 
Há famílias que regressam ao Solar Bragançano com tanta frequência, ao longo de tantos anos, que o casal acompanhou o crescimento dos filhos e dos filhos destes. 
O jardim do solar acompanhou a história da casa, foi António Desidério que plantou cada árvore daquele espaço que tem uma figueira, um marmeleiro e vários loureiros, rodeados por flores diversas que dão um ar aconchegante e perfumado ao local. 
Mesmo estando no centro de Bragança nestes jardins não se ouve o burburinho da cidade, o barulho e as buzinas dos carros.
É um pequeno santuário para os pássaros, que Desidério e Ana Maria já identificam com facilidade, pelo simples canto. Um pequeno para fazer uma pausa e degustar uma excelente refeição, acompanhada por um bom vinho e boa companhia. 

Comer, passear e esperar
António Desidério e Ana Maria, como tantos outros empresários de tantas outras áreas de negócio, foram forçados e encerrar durante a Pandemia da doença Covid-19. Uma pausa, que não fossem as vivências dramáticas de tantas pessoas, as perdas irrecusáveis de vidas roubadas por um vírus que ninguém compreendia, teria sido “agradável”.
“Eu sempre tive o sonho de estar de férias numa casa apalaçada, com alguém a cozinhar para mim, e a dar uns passeios pelo campo sem ninguém me chatear”, brinca Desidério.
Foi mais ou menos assim. O casal viveu o período de confinamento em casa, com saídas diárias para caminhar, “oito quilómetros por dia”, sublinha Ana Maria, aproveitando o percurso para colher na terra o que a natureza dá. “Apanhava azedas, agriões, merujes, cardos (fazia sopa de cardos e com as nervuras peixinhos da horta), funcho e tantas outras coisas. Chegava a casa e cozinhava. Costumava dizer ao meu marido vamos lá embora, já que não trabalhamos temos de ir ao campo buscar comida”, recorda. 
Era assim diariamente durante o compasso de espera para o ansiado regresso à vida ativa e às rotinas profissionais. 
Esta leveza tornava os dias mais ligeiros e o espetro que pairava no ar menos doloroso: “Temos consciência que, a nível dos negócios, foi difícil para muita gente, gente mais jovem, nós com uma certa idade já encaramos a realidade com maior tranquilidade”, acrescenta. 
Mas esta paragem forçada serviu para reforçar a paixão pelo restaurante, por partilhar os segredos da gastronomia com quem vai ao Solar Bragançano, pelas conversas com os clientes, pelo convívio e pelos sorrisos sem máscaras.
Talvez este sentimento tenha contagiado toda a sociedade, desde a reabertura do restaurante, após o confinamento obrigatório, que o Solar Bragançano tem estado sempre cheio, não sendo possível conseguir uma mesa sem reserva prévia.
António Desidério continua a partilhar o seu peculiar humor com os clientes, a mostrar a importância de respeitar o saber fazer tradicional, a qualidade dos produtos da terra, a promover os melhores vinhos e a contar histórias, de cá e de lá. Quem as ouve guarda-as na memória, ao lado dos paladares que experimenta, quando está a degustar a comida confecionada no lume, em potes de ferro, quando se delicia com as sobremesas da Ana Maria, que na sua simplicidade, simpatia e elegância, partilha o amor que transforma a gastronomia em arte.